Feminismo decolonial na América Latina

Por Renata Bitar

É possível encontrar um adoecimento da mulher sul-americana contemporânea, não apenas pelo distanciamento de sua consciência de ancestralidade, como também pela escassez de liberdade no espaço social que o modelo patriarcal foi eliminando ao longo das décadas.

Neste contexto, ao longo do processo de psicoterapia, pode-se identificar a necessidade do auxílio a estas mulheres para que se conectem com seus mais profundos conteúdos inconscientes negligenciados na dialética entre suas biografias e no inconsciente da coletividade. E, assim como existe uma emergente busca das mulheres pela força primordial do feminino, relacionada às mulheres ancestrais e selvagens, isto é, fora do contexto capitalista civilizatório e patriarcal, surge a vertente feminista que envolve a Decolonialidade, especialmente voltada às mulheres periféricas, marginalizadas por diversos tipos de preconceito, em situação de vulnerabilidade, pessoas fora da cisheteronormatividade, etc.

O feminismo decolonial é baseado na idealização de um feminismo voltado às mulheres de terceiro mundo, as quais representam a parcela global daquelas que passaram, historicamente, pela violência dos processos de colonização que se pautam no sistema de dominação patriarcal, racista e marcado pela subjugação do feminino.

A vertente decolonial busca o retorno do protagonismo das mulheres marginalizadas socialmente e que, muitas vezes, não se sentem representadas pelo feminismo branco nascido na Europa e que visam questões relacionadas aos direitos das mulheres, porém supondo a civilidade para haver inclusão. Por essa ótica, é possível que se compreenda o feminismo não apenas como um movimento que visa questões de gênero, como também ao que diz respeito às necessidades das mulheres que se encontram em contextos comumente fora da acessibilidade dos direitos conquistados ou ainda almejados pelo feminismo europeu.

Com isso, também se compreende que o corpo feminino é, na visão patriarcal, algo a ser colonizado, em uma tentativa de objetificação que se perpetua desde os tempos primordiais, ao mesmo tempo em que o mito da Deusa passava a ser renegado e seus cultos eram cessados por meio da perseguição, proibição e apagamento.

Ao se instaurar uma política colonial, a mulher que possui seu corpo e sua terra colonizados, acaba por descobrir que a colonização também envolve dominação de gênero, propiciando uma opressão ainda maior às mulheres, ademais quando há fronteiras dicotômicas raciais, étnicas, sexuais, ideológicas e socioeconômicas. Assim, quanto maior o afastamento dicotômico, maior a vulnerabilidade e mais abaixo se permanece na hierarquia colonial.

O pós-colonialismo de forma alguma significou o encerramento dessa desigualdade instaurada. Pelo contrário, isso apenas se solidificou com a predominância capitalista, pois este modelo econômico é, justamente, baseado na desigualdade. E a tendência dos maiores privilegiados nesta estrutura patriarcal é o contínuo afastamento das populações periféricas, ao serem sustentadas barreiras sociais e o veto de direitos igualitários.

Esta condição global solidifica toda a cultura de escassez. Em território sul-americano, identifica-se a marginalização dos povos originários e, consequentemente, o desconhecimento e desvalorização de uma cultura ancestral. Aparecem, assim, conflitos de interesses quanto à “apropriação” de recursos naturais, tal como se a Mãe Terra fosse propriedade, por exemplo, dos grandes latifundiários e empresários, enquanto as populações indígenas são tratadas como invasoras, e o genocídio indígena continua sendo invisibilizado.

Diante disso, é capaz de se realizar uma observação abrangente sobre a desconexão do mito da Deusa, a invalidação da ancestralidade e as consequências que se desenvolveram ao longo da história das civilizações ocidentais, mediante a opressão e violência às mulheres em termos de gênero, raça, etnia, orientação sexual e localização geográfica.

Em suma, tal estruturação social ocasiona diversas sequelas no processo de individuação dessas mulheres, inclusive o afrouxamento do eixo Ego – Self, em virtude de todas as deficiências históricas, intensificadas durante o período de colonização.

Desde o corpo feminino, à mente, ao comportamento, crenças, capacidade de escolha, todo o essencial à alma da mulher foi sujeitado ao domínio patriarcal, ao ponto de dissociar a própria alma feminina da Deusa, gerando complexos ligados às forças psicológicas relacionadas ao arquétipo da Grande Mãe. Drenada, a força vital feminina necessita ser reavivada.

Talvez o reavivamento dos rituais e terapias envolvendo o Feminino apontem para a necessidade da coletividade das mulheres sul-americanas compreenderem suas raízes oprimidas e negligenciadas. Para algumas delas, vivenciar tais processos pode sugerir a reconexão não apenas com aspectos de seu inconsciente pessoal biográfico, mas com a complexidade de valores que compõem a alma coletiva, também passando pelo reavivamento da ancestralidade indígena, que torna possível a jornada da Individuação.

Psicóloga Renata Bitar

Fonte:

CAMPBELL, Joseph. Deusas: os mistérios do divino feminino. São Paulo: Palas Athena, 2016.
ÉSTES, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Rev. Estud. Fem: Florianópolis, 2014. v.22, n.3, p.935-952. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 026X2014000300013&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 23 de setembro de 2020.
VARELA, Marisa. Iniciação Inka. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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