Por Tiago Botelho
O prestígio mexicano na pintura modernista é incontestável, graças à obra de artistas como David Alfaro Siqueiros, José Clemente Orozco, Frida Kahlo e Diego Rivera. Um dos traços que caracteriza o legado dessa geração -especialmente os pintores muralistas- é o interesse pela questão social, principalmente a emancipação camponesa e a luta por condições mais dignas de vida, além do combate ao imperialismo norte-americano, o resgate de heróis indígenas martirizados pelos espanhóis entre outras temáticas que alinhavam o programa estético mexicano às utopias revolucionárias do século XX.
Os tempos mudaram, mas as sementes lançadas por essa célebre geração vigorou dentro e fora do México. E foi com muita alegria que conheci pessoalmente alguns representantes dessa nova geração de artistas, na ocasião do projeto Muraleando, realizado em Havana, Cuba, em Abril de 2018. Apesar das décadas que separam os dois grupos, esses artistas mantém acesa a chama revolucionária dos seus predecessores, provando que o muralismo continua sendo uma das principais formas de expressão dos pintores mexicanos.
Mexicanos não – CHICANOS – já que o grupo em questão possui origens estabelecidas entre o território dos Estados Unidos e México. Muitos deles migraram ainda crianças para a Califórnia, outros tiveram famílias deportadas dos EUA para regressarem anos depois, outros ainda já nasceram em território norte-americano. Histórias distintas de um mesmo conflito, muitas vezes tenso, que ronda o que antes eram terras mexicanas, anexadas aos Estados Unidos após a guerra entre os dois países, em 1848.
O fato é que para muitos que nasceram e cresceram ali, a distância entre, por exemplo, Tijuana (MEX) e San Diego (EUA) é uma questão meramente burocrática, ainda que a fronteira que separa as duas cidades gere episódios muitas vezes marcado por prisões, mortes e famílias separadas. Do lado norte-americano, os de origem latina sofrem todo tipo de preconceito racial e discriminação por parte das autoridades policiais, e até de cidadãos de origem anglo-saxônica. Os “chicanos” – assim eles são chamados de forma depreciativa- se tornaram uma categoria estigmatizada na “América”, mas logo a população latina se organizou, e tratou de inverter o jogo, transformando o termo em motivo para sentir orgulho. Nascia o Movimento Chicano.
A ORIGEM DO CHICANO PARK
Quando a prefeitura de San Diego decidiu mudar o estatuto do bairro de Logan de zona residencial para zona industrial, uma série de ferro-velhos se instalou na região, predominantemente ocupada por latinos, ou ‘chicanos’. Na época, a comunidade lutava pela criação de uma parque recreativo, e a chegada dos ferro-velhos, aliada à construção de um complexo de rodovias suspensas, acabou por forçá-los a lutarem pelo direito à moradia e cultura. Depois de muita negociação com as autoridades californianas, a comunidade latina enfim conseguiu a cessão de 32 mil metros quadrados para o tão sonhado parque. Mais de cem anos depois da guerra, uma parte daquelas terras da Costa Oeste voltava a pertencer aos seus donos originais.
As coisas no entanto não foram fáceis até que o Chicano Park se tornasse o que é hoje. Criado sob as largas rodovias da freeway suspensa, o parque era pontuado por dezenas de pilares gigantescos, que davam ao local uma aura cinzenta. Os artistas locais organizaram um centro cultural – o Centro Cultural LA RAZZA – e nele ofereceram aulas de pintura para jovens moradores das ruas ao redor do parque. Em seguida, deram início a uma longa intervenção artística que se mantém viva do início anos 70 até os dias de hoje.
RESGATE CULTURAL
“Para vocês, cultura mexicana significa Taco Bell e mariachis com chapéus engraçados Nós temos uma cultura milenar, e no que vocês a transformaram? O que vocês nos deram em troca dessas terras usurpadas durante a guerra? Um sistema social que nos faz mendigos e policiais que nos deixam com medo. Não vamos mais insistir. Esse parque é nosso”
Foi com esse tom que os chicanos conquistaram o direito de ocupar o parque, e a ousadia permaneceu como marca registrada das ações posteriores, inclusive quanto à temática dos murais que começaram a ser pintados nos pilares da freeway. Quase todos os murais possuem mensagens de emancipação cultural, celebrando a herança dos povos indígenas da América Central, os grandes líderes das insurgências rebeldes como Emiliano Zapata, e gritos de guerra contra a massificação norte-americana, tudo executado com a primosia técnica já consagrada desde os tempos das vanguardas modernistas.
VICTOR OCHOA, VETERANO DO MURALISMO CHICANO
Um dos artistas que merece destaque é Victor Ochoa, um dos primeiros a realizar murais no Chicano Park. Ativista da causa chicana desde meados dos anos 60, Ochoa tem mais de 50 anos de carreira como muralista, professor, palestrante e coordenador de projetos, liderando as ações de restauro do parque. Conheci Victor em Havana, e durante os quinze dias de projeto, pude aprender bastante sobre a arte muralista, não só em seus aspectos estéticos, mas também sobre a dimensão política de uma intervenção urbana. Abaixo, uma seleção de algumas obras do Chicano Park.
VIVA LA RAZZA!
Parceria com Tiago Botelho