Fábio Salun
A relação da fotografia com o retrato é intensa, Walter Benjamim já dizia que a verdadeira vitima da fotografia não foi a pintura de paisagem, mas o retrato em miniatura (Benjamin, 2012. p. 93.) e que, já por volta de 1840, muitos pintores de retrato já haviam largado os pincéis e se voltaram aos químicos fotográficos. A descoberta do daguerreotipo revolucionou a fama, à divulgação das grandes personalidades assim como à documentação de pessoas autônomas. O que me proponho neste breve texto é pensar alguns deslocamentos no retrato e no autorretrato fotográfico ao longo dos séculos XX e XXI.
E, nesse sentido, porque não começar por Nadar, famoso retratista do final do século XIX e início do XX, e o autorretrato que produziu quando disputava judicialmente com seu irmão a patente do nome que lhe deu fama. Nadar se fotografou por completo registrando todos os ângulos de seu busto e comprovando sua identidade. Se foi o retrato um dos grandes focos do fotógrafo, aqui não buscou exaltar sua personalidade ou enfatizar as características do individuo, mas se comprovar enquanto Nadar, sua pessoa e a autoria de sua produção. Beirando “o conheça-te a ti mesmo” proposto pelo oráculo de Delfos, se colocou diante da câmera e fez um giro de 360 graus fazendo uma sequência de fotos de toda sua cabeça buscando comprovar que é ele próprio o Nadar.
Um outro tipo de deslocamento interessante no retrato surge da desconstrução humana característica do pós-guerra e explorada principalmente pelos artistas surrealistas e Hebert Bayer ´um bom exemplo disso. O fotógrafo produziu um autorretrato onde desconstruiu sua figura no mais típico modelo surrealista. Como uma massa de carne seu braço é cortado e uma fatia de seu corpo é retirada do conjunto. A montagem é ainda enfatizada pelo olhar do fotógrafo que encara com surpresa o acontecimento e deslocando a visualidade humana convencional.
De fato, a relação entre o surrealismo e a fotografia foi potencialmente interessante para o retrato e o autorretrato e a relação entre Salvador Dali e o fotografo Phillip Halsmann foi particularmente significativa. Halsmann produziu muitas das fotografias icônicas da Dali. Em seu portifólio encontram-se as fotomontagens do artista voando e tantas outras imagens que se espalharam pelo mundo. Na figura abaixo Halsmann produz um retrato interessante “Dali de um só olho” onde o artista é representado pela montagem e espelhamento de um dos lados de seu rosto: o resultado é uma imagem intrigante que não apenas representa o artista, mas também permeia toda a visão poética que se encontra em suas obras.
Como vimos em Bayer, as possibilidades de montagem também são significativas para estes deslocamentos no retrato. Angus Mcbean, fotógrafo e cenógrafo galês e entusiasta do surrealismo, interagiu, por meio da montagem no laboratório, a imagem humana com o ambiente criando retratos fotográficos um tanto inusitados, mas que aguçam nossa curiosidade e repensam o problema da realidade no retrato fotográfico. Em “autorretrato” seu rosto foi colocado sobre um degrau de uma escada criando uma imagem irônica e repensando as possibilidades e funcionalidades da produção do retrato.
Como não podia deixar de ser o uso de espelhos e reflexos também colaborou ao deslocamento do retrato e autorretrato nos séculos XX e XXI, Ilse Bing, fotógrafa alemã que entrou na universidade para estudar física e acabou migrando para o curso de história da arte, criou em “autorretrato com espelhos” um complexo jogo de espelhos refletindo sobre dois tipos diferentes de retratos: o retrato frontal e o perfil. Um espelho frontal e outro em diagonal a sua posição permitem a fotografa registrar duas poses típicas do retrato em um mesmo e único enquadramento.
Enfim, nestes breves parágrafos tentei perceber como a ideia de uma fotografia deslocada acompanhou a produção e as imagens da percepção humana no retrato e o autorretrato na fotografia dos séculos XX e XXI, repensando a relação entre o eu e o outro, o fotógrafo e o modelo e a imagem e o real, trazendo a tona diferentes maneiras de lidar com a imagem humana no espaço da fotografia.
Fábio Salun
Mestre em Artes Visuais pela UDESC
fabio.salun@gmail.com
Referências:
BARTHES, Rolland. A câmara clara: notas sobre fotografia. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: brasiliense, 2012.
DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Tradução de Marina Appenzer. Campinas – SP: Papirus, 1993
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.
HACKING, Juliet. Tudo sobre fotografia. Tradução de Fabiano Moraes, Fernanda Abreu e Ivo Korytosky. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.
KRAUSS, Rosalind. O Fotográfico. Tradução de Anne Marie Davée. São Paulo: Gustave Gili, 2014.
MIBELBECK, Reinhold. Fotografia no Século XX. Tradução de Sandra Oliveira. Lisboa: Atelier da Imagem, 1998.