Curadoria como mediação

Áureo Guilherme Mendonça

“Na instância suprema, as obras de arte

são enigmáticas, não segundo a sua composição,

mas segundo o respectivo conteúdo de verdade.”

Theodor W. Adorno

Com certeza não é o papel do curador decifrar os enigmas das obras que ele recebe para montar as exposições. Essa é a tarefa que cabe a todos os indivíduos que usufruem daquele espaço a partir da abertura da mostra ao público. Muito se tem especulado sobre a importância da curadoria no âmbito de uma discussão mais ampla acerca da arte contemporânea, suas contribuições efetivas e possíveis interferências malsãs. A questão gira em torno de uma pergunta básica: a curadoria induz o público a atingir certas considerações efetivas? Ou as pessoas tem a sua autonomia respeitada para tecerem suas próprias considerações sobre as obras expostas? Minha preocupação aqui é de outra ordem. Parodiando a terrível querela no nosso campo educacional, eu perguntaria também: podemos falar em uma “arte sem partido”? Baudelaire, em pleno século XIX, insistia em que isso era impossível, e afirmava que o artista, assim como o crítico, tinha a obrigação de assumir o seu papel de cidadão do mundo.

Para Baudelaire é fora de dúvida que o crítico deve assumir primeiro o seu papel no mundo, fazer escolhas, se apaixonar por suas convicções, inclusive políticas – anti-burguesas, de preferência – para que seu olhar possa enxergar para além do senso comum. (…) Anátema de seus contemporâneos por ter sido profeta de uma humanidade mais saudável do ponto de vista ético e estético, a crítica de arte tem uma profunda dívida com esse pensamento insubordinado de Baudelaire. Se Kant representou a guinada filosófica, o poeta francês foi a própria corporificação dessa modernidade das idéias estéticas. (MENDONÇA, 2005, págs. 37/38)

Dessa forma, fica muito difícil esperar que o curador não esteja imbuído de uma linha determinada de pensamento quando parte para o planejamento de uma exposição. Existe um tema, uma idéia, um compromisso com a vida que subjaz em cada detalhe desse minucioso trabalho de curadoria. A neutralidade não existe aqui, porque ela é inadmissível em um mundo que exige das pessoas um posicionamento diante da realidade injusta e desigual que observamos em todo o planeta e em especial em nosso cada vez mais conturbado país. Ser curador é saber afinar as cordas desse instrumento deixando entrever o sentido das obras sem revelá-las explicitamente.

A arte contemporânea, por sua própria natureza, já estabelece as condições para a sua desvelação ao público. Os objetos expostos são uma ressonância , ou uma dissonância, de fragmentos do mundo que se encontram em repouso em alguma parte do nosso inconsciente. Ao curador cumpre saber articular esses objetos de tal ordem que a interação do público permita  que se possa estabelecer uma produtiva relação dialógica, com efeitos transformadores sobre todos os atingidos pela idéia chave do trabalho curatorial. Essa é a mediação que consideramos fundamental no trabalho da curadoria e, nesse sentido, o curador entra de fato no circuito sendo parte efetiva de todo o trabalho. O arranjo das obras no espaço expositivo  não significa manipulação sobre o olhar de outrem e sim um conjunto de sugestões para ativar a capacidade de olhar de modo crítico de cada um. Insisto em afirmar que o papel do curador é cada vez mais de essencial importância para a ampliação do processo de recepção da arte contemporânea. Se temos por objetivo aumentar o público voltado para a arte, então devemos alimentar os canais de formação de bons curadores.

Referências:

. ADORNO, Theodor W. Teoria estética. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

. __________. Oeuvres completes. Paris: Robert Lafond, 2001.

. MENDONÇA, Áureo Guilherme. O labirinto do Brasil moderno – A crítica de arte de 1930 a 1950. Rio de Janeiro: UFRJ (Tese de doutorado), 2005.

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